Revista Cinema Caipira

Mister Lonely

Em O último Elvis, uma versão decadente do Rei do Rock toma os palcos de bingos e asilos no subúrbio portenho.

O último Elvis 9Elvis move sua pélvis pela zona sul de Buenos Aires. Apesar de parecer mais a um Neil Young arruinado, Carlos Gutiérrez (nome com o qual, a contragosto, figura nos registros) é Elvis Presley – de Memphis, óbvio, mas vivendo em Avellaneda por alguma desordem do destino. O último Elvis: aquele que já estava gordo, meio calvo, sempre suado.

Carlos não se mimetiza ao ídolo tanto pela semelhança física, mas sim por também portar a angústia constante que se apossara de Presley em seus anos finais. O imitador é um fanático e provavelmente está à beira da loucura, mas o filme segue-o sem julgá-lo, rechaçando qualquer recaída pelo ridículo ou pela paródia. A épica íntima desse personagem pequeno que está “a ponto de fazer algo grande”, que quer triunfar, é o primeiro filme de Armando Bo, diretor-estrela de comerciais na América Latina. Sua primeira incursão no cinema foi como roteirista (junto a Nicolás Giacobone, com quem também escreveu O último Elvis) de Biutifil (2010), do mexicano Alejandro González Iñárritu – que pela primeira vez trabalhava sem Guillermo Arriaga, parceiro na consagrada trilogia Amores perros (2000), 21 gramas (2003) e Babel (2006). Iñárritu aparece nos créditos de O último Elvis como produtor, ao lado da Telefe, canal de televisão que se configura como uma parceria importante para a visibilidade da produção (uma espécie de Globo Filmes). O longa fez uma estreia tímida em Sundance, mas conquistou uma iluminada première nacional como filme de abertura do 14º BAFICI (Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente, o mais importante do país), em abril de 2012. Depois, saiu colhendo prêmios internacionais sem cansar: em San Sebastián, Sofia, Toulouse, Londres.

Elvis (e não nos atrevemos a chamá-lo de outra maneira) se considera e atua como uma grande estrela, apesar de nem conseguir receber do sindicato. A vida é monótona e desesperançada fora de seu imaginário e da conduta obsessiva que criou para si mesmo: os sanduíches de banana com manteiga de amendoim, as despedidas com o cacoete “tchau, princesa”, a filha batizada como Lisa Marie (claro) e a insistência em chamar a ex-mulher de Priscilla, apesar de seu nome ser Alejandra. Os jogos circulares que o rodeiam em suas apresentações catárticas e brilhantes, os passeios com Ray-Ban em seu carro vintage ao pôr-do-sol, quando as mulheres lhe gritam desvairadas: “Elvis!” – é só glamour que se desprende da vida do rei. Ele está em todas as cenas, e tudo gira ao redor de sua figura e de seu universo.

O último Elvis 1

Porém, tal universo é partido em dois. Temos dois corpos, dois registros. A grandiosidade proposta por Elvis no cotidiano de perpétua homenagem a seu duplo é descontruída pelos cenários que acusam o duro contexto. A localização da história nos anos 1960 ou 1970, instigada pela cor ocre da fotografia, é desmentida pelos celulares onipresentes, ressignificando a paisagem retrô em um espaço derruído e lúgubre. Os óculos de sol são chinfrins, aquelas que chamam seu nome são putas entediadas, o couro do banco do Fairlane precisa ser consertado, o blazer está apertado nas costas e ele deve bater cartão no cemitério/fábrica de geladeiras.

Durante os shows, a steadycam se deixa envolver pelo transe do protagonista e, após girar ao redor do astro, o plano se abre para o espetáculo fascinante que se desenvolve – seja em bingos, casamentos, quermesses, festinhas de 15 anos ou asilos. Fora das apresentações, o plano se fecha, e enquadra um Elvis sozinho, em ambientes escuros, apertados. A sordidez da casa herdada da mãe sublinha a solitária existência que em nada se parece à da célebre Graceland (toda reconstruída em estúdios portenhos!). A ex-esposa e a filha alimentam o mundo de Elvis com seus nomes, mas não fazem parte dele. Iggy Pop, Britney Spears, Charly García e John Lennon somente fazem aparições simpáticas pelas quais Elvis não tem nenhum interesse – ao contrário do que acontece com os covers que se encontram e compartilham seus desamparos em Mister Lonely (Harmony Korine, 2007). Elvis é o verdadeiro solitário, lonely, he has nobody for his own além das incansáveis canções do Rei que o acompanham no walkman e na televisão. A frequente utilização de seu ponto de escuta não deixa dúvidas quanto a sua desconexão do mundo dos outros.

O último Elvis 5John Mc Inerny, que estreia no cinema interpretando Elvis, é arquiteto e imitador do cantor, líder da banda Elvis Vive, criada em 2005 na Argentina e em 2007 nomeada pela BBC de Londres como o melhor conjunto de tributo a Presley na América Latina. Completamente à vontade nas sequências dos shows, o não-ator tateia institivamente seu personagem fora do palco, sem grandes resultados. Entretanto, as dificuldades de Mc Inerny terminam por encaixar no desencaixe que Elvis sente desse lado da vida; na incompatibilidade entre essas duas existências.

Entretanto e apesar de tudo, o show deve continuar. Nem um conflito secundário envolvendo Priscilla/Alejandra e Lisa Marie, nem o maldito sindicato inadimplente vão impedir Elvis de seguir sua viagem interior e exterior. Mesmo decadente, o rei conserva sua mística. E, à sua maneira, ele vai se consagrar.

Mais sobre O último Elvis em http://elultimoelvis.com/

PS: o diretor Armando Bo é conhecido na Argentina como “Armandito”, pois porta o mesmo nome de seu avô: o famoso diretor, produtor e ator de cinema Armando Bo (1914-1981), criador da Sociedad Independiente Filmadora Argentina em 1948 e realizador de mais de 30 filmes. Junto a sua musa Isabel Sarli (1935), mais conhecida como “Coca”, Bo desenvolveu sua extensa produção com melodramas e comédias eróticas (espécies de pornochanchadas mais inocentes). Seu filme El trueno entre las hojas (1957) traz a primeira cena de nudez do cinema latino-americano, e Coca tornou-se a grande sex symbol do continente. Hoje, os filmes de Bo – com destaque para Fuego (1969) e Fiebre (1972) – são pérolas cult, sendo o cineasta norte-americano John Waters um de seus fervorosos admiradores.

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